quarta-feira, 29 de junho de 2011

UMA SÍNTESE MOURISCA

Depois de uma aproximação progressiva dos elementos culturais mouros, em Portugal e no sul da Espanha - precisamente na Andaluzia, fui para Marrocos, direto para Marrakech, interessante e impactante começo: a praça mais exótica do país, com encantadores de serpente, malabaris, adestradores de primatas (não humanos, pois destes também há), trajes típicos, músicas de raiz, uma panacéia.
Merzouga foi o próximo destino, no intuito de conhecer os berberes, o povo nômade que cruzava o Saara em suas caravanas nos áureos tempos. Foram dois dias até chegar ao destino, a porta de entrada do Saara, com dromedários estacionados para prosseguir até o acampamento...
Andar naquele camelídio de uma só corcova é bastante peculiar e, por vezes, desconfortável, mas a empolgação supria qualquer senão. Avistar o acampamento, em meio a dunas e o céu azul parecia um sonho; ver o sol se pôr no Saara, pisando descalço nas suas areias, já era um delírio; jantar um tagine em prato comum (cada um com seu garfo, como manda a boa etiqueta...) centralizado em um tapete estendido na areia, no meio do acampamento, quase determinou uma transposição no tempo. 
Mas o sublime veio depois. Num grupo reduzido, guiado por Ahamed, caminhamos pelas dunas, e iluminados pela lua ficamos ouvindo um pouco da cosmovisão berbere. O nosso professor desenhava na areia para ilustrar seus pensamentos repletos de uma historicidade ímpar, atendendo prontamente as indagações; sobre as atividades nômades atuais foi categórico: "as fronteiras dos países determinaram a fixação em áreas específicas". Todavia, quando lhe perguntei sobre a religião do seu povo, anterior ao Islã, ele não titubeou e disse que se trata do passado e alheio à realidade; mesmo quando tentei justificar a minha pergunta dizendo que apenas queria saber da história e jamais questionar a fé, a resposta foi ainda mais veemente: "o que eu poderia dizer a respeito está dito". Contive-me no meu "anseio por esclarecimento" (típica atitude ocidental), pois não queria correr o risco de cair em desagrado com quem tinha o mais importante conhecimento no momento: o caminho de volta para o grupo maior...
Optei por dormir ao relento, em um canto do conjunto de tapetes colocado no centro do acampamento, protegido tão somente com a minha veste típica (muito prática para a ocasião, pois era coberta e lençol ao mesmo tempo), podendo apreciar a grande abóboda da camada celeste sobre o deserto e tirar minhas conclusões de que é compreensível esse povo estabelecer-se por aqui, um ambiente hostil mas muito próximo da essencialidade da vida e propício a exercícios contemplativos. 
Tão logo retornei a Marrakech, programei o destino para Essaouira, Capital Cultural de Marrocos. Dois dias depois fui para Casablanca, Capital Econômica, onde pude conhecer o interior da Mesquita Hassan II e comprovar os requintes arquitetônicos do país. Dirigi-me para Fez, e  tão logo pude ter uma ideia sumaria da intitulada Capital Espiritual de Marrocos, fui para Tânger usufruir do ar mediterrâneo do norte, constatando que na "porta de entrada" (no meu caso, porta de saída) do Magreb pode-se ter uma boa ideia da sua realidade e o quão diferente o é da perspectiva ocidental.
A bem da verdade, a estada em Marrocos deixou reticências... pelos meus limites do momento, pois fui bastante cauteloso com situações de risco e como a cultura local ainda me é alheia, estabeleci uma larga faixa de fronteira, o que sempre faço em minhas viagens, mas nunca com tamanha dimensão.
Na Biblioteca Municipal de Essaouira li um texto que tratava da complexidade da relação entre diferentes contextos culturais, e citava que segundo Mahdi EL MANDJRA (La Decolonisacion culturelle. Ed. Walili, Marrakesh. 1996), para alcançar um diálogo frutífero entre Norte e Sul é imprescindível passar por uma "descolonização cultural" que permite operar um progressivo câmbio nas estruturas mentais. Creio que não me descolonizei o suficiente para adentrar no "admirável mundo", que vivenciei por duas semanas. 
Mas é de se frisar que para mencionado autor, com o que concordo, a descolonização há de ter duas vias. Conquanto tenha ido sobremaneira aberto para o diferente, não vi muitas luzes ao meu encontro. Constatei que uma coisa é a cultura moura cristalizada nos palácios andaluzes e até em atitudes mouriscas/mudejares (inscrita no nosso imaginário romântico), outra coisa, bem diferente, é a cultura viva inserida no contexto social e na disputa geopolítica, que seguramente distanciou os mundos.
Marrocos enfrentou situações adversas com seus vizinhos ocidentais, cabendo um destaque para campanhas bélicas espanholas que acirravam o ânimos populares, resultando em exortações hostis em prosa e versos, como, a título de exemplo, os que seguem (escritos durante o conflito de Melilla, iniciado porque um general insistiu em construir uma fortificação em um local sagrado nas montanhas do Rif):

"A mi amor que está en Melilla
le he escrito con mucho afán,
diciéndole que me mande
una oreja del Sultán
...
A la bandera española
los moritos ofendieron
mi hermano lava la mancha
con sangre de los rifeños"
(Rafael GUERRERO, Crónica de la Guerra - 1893)

Esta é só uma amostra do que li para confirmar que o transcurso histórico levou a uma realidade complexa e polarizada, e somado ao que vi ponho-me a pensar que precisamos dialogar mais no plano global. No plano individual, só tenho a agradecer a oportunidade de viver um pouco do mourisco que sempre sonhei, e que agora sorvo na encantada Andaluzia.







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